“cada vez que
encontro outras mulheres
para partilhar
histórias
nos tornamos terra
fértil.”
“não foi dessa vez
ele pretendia
confinar
ela pretendia viver.”
“quando perguntarem
de mim
diga que fez o
possível
mas não conseguiu me
estragar.”
“se você acha que o
amor
não deve machucar
você
você está certa.”
“para tudo que
destrói
e é violento
damos o nome
de abuso.”
“antes de
se afundar
novamente
no que já passou
se lembre
do porquê
de ter
ido embora.”
Escolhi esses poemas do livro
incrível “Tudo nela brilha e queima”, escrito por Ryane Leão, porque eles remetem à experiência do que é
viver o abuso de uma forma sucinta e bela. No dia 05/10 tivemos mais um
encontro. Nos disseram que iríamos abordar o tema dos relacionamentos abusivos
e pediram desculpas de antemão por abordar algo que seria doloroso para muitas
de nós.
Duas facilitadoras se
revezaram na leitura de frases que descreviam situações vividas em diferentes
tipos de abuso ou violência: física, psicológica, moral, patrimonial e sexual.
Algumas das frases lidas foram: “Xingava.
De todo nome feio: meretriz, rapariga, prostituta. Só nome feio, só nome baixo.
Até hoje ele me xinga, quando ele tá com raiva.”; Essa comida ou tá salgada” ou
“tá sem sal”, nunca chegava ao gosto dele, nada. Sempre criticava isso e jogava
o prato no chão.”; “Ele colocava coisas em mim quando chegava bêbado em casa.
Eu, apenas rezava para acabar logo.”; “Ele falava
que ninguém mais ia me querer. Que eu estava feia e velha. E que eu tinha sorte
de ainda estar com ele. ”; “Ele dizia que eu tava doida, que isso nunca
tinha acontecido, que eu tava inventando coisa... eu comecei a duvidar da minha
memória. ”, entre outras tantas.
Ao nos identificarmos com as
frases lidas, ou ao identificarmos mulheres próximas a nós que passaram pelas
situações descritas, fomos convidadas a estourar balões vermelhos que estavam
espalhados pelo chão da sala. A cada frase, o barulho dos estouros preenchia o
espaço. Algumas de nós relataram o incômodo ao ouvir os estouros. Pensei como esse
incômodo era uma representação, claro, muito mais amena, do desprazer e dor
causados por essas vivências. Após todos os balões terem sido estourados, como
uma das cursistas observou, a sala pareceu ter ficado cheia de pétalas rosas
espalhadas pelo chão, simbolizando uma transformação das dores em algo bonito a
partir da nossa troca catártica.
Depois, houve um momento de
partilha para as mulheres que quisessem falar sobre suas experiências. Dizem
que a fala cura. Não se cura, mas ter podido narrar a própria história e ter
recebido apoio e reconhecimento por aquilo que se viveu certamente foi
significativo para muitas de nós. Relatos tristes, revoltantes. Talvez seja
impossível definir o amor, mas fica a certeza do que NÃO é amor: violação,
subjugação, desrespeito, desconsideração, humilhação, agressão, opressão,
silenciamento.
E assim percebemos como foi
valioso esse momento de acolhimento, essa partilha com outras que viveram
situações diversas umas das outras e ao mesmo tão semelhantes. Justamente essa
compreensão sobre a semelhança nos possibilitou sentirmo-nos menos sós na nossa
dor. Nem todas as mulheres viveram relacionamentos abusivos, mas com certeza
conheceram outras que viveram. Ou que ainda vivem. Infelizmente a violência
contra as mulheres em relacionamentos íntimos ainda é muito comum.
Sim, conflitos fazem parte de
qualquer relacionamento humano e é muito desafiador convivermos em intimidade
com outras pessoas. Contudo, relações abusivas não são conflitos simplesmente, desentendimento
quaisquer. São um reflexo do desequilíbrio de poder numa sociedade machista e
patriarcal, em que mulheres se tornam vítimas por serem mulheres. Pessoas que
dizem amá-las mas que precisam demonstrar seu poder por meio da anulação ou
aniquilação delas.
Velhas formas de abuso
convivem ao lado de práticas mais “modernas”. Assim, a violência persiste e se
reinventa. Algo que aprendi nesses anos lidando com as sequelas do pós-abuso é
que é preciso dar voz às nossas próprias narrativas. E conseguimos fazer isso
na medida em que ouvimos relatos de outras mulheres que viveram situações
semelhantes. Talvez ali mesmo na sala houvesse alguma mulher que ainda não se
percebeu dentro de uma dinâmica de relacionamento violento mas que ao escutar
outras histórias pode ter notado semelhanças e passado a se questionar mais a
respeito.
Outra coisa que aprendi é que
para lidar melhor com esse tipo de trauma é preciso fortalecer-nos, identificar
o que nos nutre, buscar nossos projetos pessoais e coletivos, reaprender a
sonhar, não sucumbindo ao desencanto. Não é nada fácil porque esse tipo de
experiência nos abate de um jeito muito profundo e demora muito tempo para
sarar essa ferida. Mais do que possível, é necessário que nos reinventemos. E
fazer isso com a ajuda e a companhia de outras mulheres facilita muito essa
jornada e nos torna muito mais potentes.
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